recentemente vi um k-drama chamado Se a vida de ter tangerinas, da Netflix. me derrubou, pisou em cima e jogou o ácido cheiroso de tangerinas sobre o meu corpo.
gostei muito, mas não durante toda a série - eis o motivo deste texto.
lembro muito de uma citação bastante difundida do Guimarães Rosa, presente no conto Barra da vaca, do livro Tutameia:
Não podia abreviar com a saída, tinha de ir ficando naquele lugar, até às segundas ou terceiras nuvens. Domenha olhando-o: — “Felicidade se acha é só em horinhas de descuido...” — disse, o trestanto.
sempre achei a citação linda, digna de moldura - decoração alegre para a casa e o coração. mas nunca a vivi de fato. não consigo me descuidar da vida, descansar; não consigo deixar de procurar algo grandioso.
vivo para grandes feitos, com lançamentos de livros, experiência artísticas profundas, eventos em que eu possa fazer muito, pertencer a algo, sentir que deixo um rastro longo pelo tempo. e isso me impede de ver a felicidade, pois as horinhas viram dedicação e obsessão - viram HORAS COM RENDIMENTO.
o começo de Se a vida de ter Tangerinas me ganhou demais. não vi todos os k-dramas existentes, mas já tenho um top 5, o que me permite ter uns dois centavos a contribuir na discussão sobre qualidade. e este começa muito bem, com uma estética incomum para o gênero. achei diferente e bem montado.
só que o meio me pareceu chato. eram situações cotidianas, momentos de ruptura com os filhos, eles crescendo e tendo os próprios dilemas. tudo parecia muito arrastado e repetitivo. quase desisti.
mas aí veio o final - todos aquele meio arrastado foi reapresentado, com o casal de protagonista agora no fim da vida, olhando para trás e percebendo suas próprias horinhas de descuido. fui desmontado em vários níveis - pois não vi a beleza do cotidiano daquela família; e mais - vi que não sei aproveitar o próprio cotidiano da minha família.
há um luto em específico que lembrou algo que vivi e que talvez não tenha experimentado o suficiente. chorei. chorei muito. o amor se descobre verdadeiro quando vivido neste ritmo invisível da vida, em que cada detalhe se amontoa sem alarde e forma este corpo que ama. a arte serve para nos lembrar do amor.
mas como vivermos as horinhas se o que vemos nas redes, nas plataformas, nos desejos, são somente coisas grandiosas, viagens performáticas, frases intensificadoras, grandes experimentos, milagres espetaculares? não há escapatória - precisamos todos performar grandiosidades também, pois este parece ser o sentido maior da vida.
talvez por isso as igrejas estejam virando palco, os cultos shows e crescem em disparada. são convites performáticos, exposição de verdades intensificadoras, respostas objetivas para este anseio instagramável. chega a ser estranho ao evangelho cristão - que é o modo do menor, do doente, daquele que não pode e reconhece que não consegue performar.
a tristeza, neste caso, é que a constante tentativa de performance esvazia a vida - gera dependência performática, uma condição para se sentir vivo. é como se viver estivesse relacionado somente ao trabalho; exigisse rendimento.
esta reflexão me lembrou um livro que nunca li, mas guardei na cabeça o título. chama-se Sociedade do espetáculo, de Guy Debord. fui ver sobre ele, cogitando a compra, e me deparo com um primeiro parágrafo assim:
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.
vivemos uma representação, performance, um palco invisível que exige que não sejamos apenas nós, mas a expectativa de algo maior.
eu quero ser um grande escritor, que leiam meus livros, sintam também o meu modo de ver o mundo. sonho com isso. e me perco nesta representação, neste sonho, nesta obsessão. acabo esquecendo que as horinhas de descuido estão sempre com alguém externo - na parte calma da história.
recentemente li o livro Favor fechar os olhos - em busca de um outro tempo, do Byung-Chul Han. a última parte de sua argumentação nos convida a olhar para a vida por um tempo do outro:
O tempo que pode ser acelerado é o tempo do eu. é o tempo que tomo para mim. ele leva à falta de tempo. Mas há também um outro tempo, a saber, o tempo do outro, um tempo que dou ao outro. O tempo do outro como dádiva não pode ser acelerado. Ele também escapa ao trabalho e ao desempenho, que sempre exigem o meu tempo.
eu quero encontrar este tempo, principalmente para poder viver performaticamente com a verdade que sou no silêncio, sem me preocupar com a demanda dos meus sonhos. quero viver as horinhas de descuido para ser pheliz.